29 de abril de 2011

Pelos andares


A morte apresenta-se a um andar acima. Eu, a vários metros do chão, observo a vida que entra e aqui deixa de existir. Outro dia, vi-me fechada em um espaço transitório com certa alma de idade semelhante à minha. Não sei o que esta fez ao mundo para merecer ir embora tão cedo e de forma tão sofrida, mas ela despedia-se dos que a amam. Com ou sem razão, estavam-lhe tirando. A tristeza de quem acompanhava sua trajetória doía naqueles que só estavam de passagem, como eu. Mas a dor mais latente era a da pessoa que iria deixar tudo isso. Enquanto nos aproximávamos do meu destino final, vi-me encarando a fragilidade que se é possível suportar, se é que algo ali era suportado. Como somos capazes de enfrentar situações que imaginamos cruéis antes de serem as nossas, mas enfrentamos. E com uma força jamais conhecida. Nosso corpo tem resistência divergente ao limite das emoções. Enquanto a vida nos parece impossível, ele resiste até a exaustão da alma. E, às vezes, discorda da vontade de viver e a abandona ao mundo, sem mais ligação com a vida daqui.

Olhar os ossos que sustentavam a pele sem carne me angustiava. A doença comia suas energias até absorver pedaços de pessoa. A fraqueza era nítida na maneira como seu leve corpo pesava sobre a cama. Eram quilos que sumiam ao olho nu. Apenas os enxergava quem conseguia sentir um pouco de sua dor. Apenas um pouco. Somente ela sabe pelo que passa. As marcas no lençol eram feitas pelo que restava de vontade de viver. O corpo já flutuava, perdido entre espaços sem sentido definido.
Dava para perceber que, apesar dos olhos fechados, aquela mulher mantinha milhares de pensamentos acordados e muito vivos. A proximidade da morte deve fazer com que vivamos uma vida inteira de novo. Lembranças, saudades, remorsos e vontades que não serão satisfeitas. Algumas coisas provavelmente doem mais, outras um pouco menos, mas não consigo conceber algo que não remeta à dor.
Saí do espaço transitório desejando um lugar seguro, com altas doses de conforto e redução da realidade. É irônico como conviver com a morte faz a gente pensar na vida. Mas eu não relembrava a que vivo. A expressão da alma com idade semelhante à minha não desocupava minha mente e aqui permanece até agora. Não sei se ela já partiu ou se seu corpo ainda a prende àquela expressão dos olhos fechados. Sua imagem ainda causa atordoamento a quem viveu alguns segundos ao seu lado. Espero que seu corpo tenha conseguido a forma do peso certo e que não mais carregue excessos que não lhe cabem. Eu sigo subindo escadas e elevadores, cruzando com almas antigas, mas nunca mais com alguma com idade semelhante à minha. Ela ficou marcada.

20 de abril de 2011

Meu lugar

Vou para casa
Há tempos procuro o caminho que me leve
Uma confusão de estradas compromete minha visão
Já cheguei a pensar que moro onde estou
Mas não dá mais...
Vou para casa
Lá vive o que sou
E todas as possibilidades do que penso ser
Meu buraco está em casa
E preciso esconder-me
Vou para casa
De todos os lugares que já vi
Os chãos que pisei
Os cheiros que senti
Os abraços que me seguraram
Não bastam mais
Preciso do silêncio do colo da mãe
Das palavras que não me derrubam
Da paz do meu caderno
Do aconchego das minhas paredes
Das paisagens vistas por meus olhos
Nada mais além disto me basta
Não agora

5 de abril de 2011

Gerundiando

Ô... Saudade do tempo. Tempo em que o tempo não me faltava e o que eu tinha não me empurrava vida afora. A madrugada não me cobrava fechar os olhos e a luz do dia não forçava o abrir deles. A nostalgia da época em que eu tinha os maiores problemas do mundo (e ouvir músicas tristes curava grande parte deles) faz rir a menina que abandonou os saltos. Os pés agora andam rentes ao chão. Sentem mais, vivem mais e padecem mais. Na altura certa dos meus olhos vejo a minha altura perder-se meio à multidão que passa. Os olhares que cruzam os meus não dizem muito além do que imagino. São vazios perdidos na megalópole emocional, onde tudo se perde e pouco se absorve. A terra é rara e as gramas são enfeites de rua, com o sol derretendo à música de buzinas e soltas entre brechas de cimento. Sobreviventes ao homem. Assim como nós, o que resta de natural surge escondendo-se e camuflando-se entres os muros construídos por quem achou que sabia o seu papel. Nos prendemos ao caos e libertamos nossa sanidade ao outro. O que está ao controle é a total falta de responsabilidade pelo que não controlamos. Nos livramos do que não podemos ter e nos atemos apenas ao mínimo de consciência prática do que temos. E assim, tudo o que é válido na vida vai perdendo seu significado até deixar de ser. Transforma-se na vertente que a gente esconde ou da qual se esconde. Eu limpo os olhos para ver, mas quero, muitas vezes, cegá-lo para não mais sentir parcialmente existir. O inteiro me cobra um pedaço que se perdeu há anos atrás, do qual restou uma singela lembrança e uma nostalgia que não acompanhou o tempo. Rendeu-se a ele, mas passou a ter mais significado do que todos os outros que ficaram. Persigo um labirinto sem falsas entradas e apenas uma saída. Faço desse caminho o meu e vou e volto e retorno e fico, mas não saio. Só vou cruzar a linha final quando recuperar as peças e rejuntar as que ainda couberem na forma nova. A forma antiga eu prefiro abandonar junto ao muro que a construiu. O pensamento fica na grama que venceu seu chão. Ô saudade... Saudade do tempo em que eu não pensava nisso e o tempo que eu tinha não era usado para tentar entender o tempo do qual tinha saudade...